
Há doze anos faleceu Chico Science. Injetando modernidade na tradição, sua geração criou o manguebeat em Pernambuco e inovou a música brasileira.
No fevereiro próximo, completam-se doze anos desde a trágica morte do cantor e compositor Francisco de Assis França, mais conhecido como Chico Science. Um acidente de carro entre Recife e Olinda foi responsável por destituir a banda Nação Zumbi de seu líder. Chico foi um dos responsáveis pela criação do manguebeat, um movimento cultural que tirou a capital pernambucana do marasmo artístico no início dos anos 90.
Uma das regras básicas do manguebeat é modernizar a tradição musical local. Daí a metáfora de enfiar a antena parabólica (elemento tecnológico de contato com o exterior) na lama do mangue para, antropofagicamente, deixar-se atingir pelas boas vibrações e “envenenar” os gêneros regionais com as novidades do rock, da soul music, do rap e da música eletrônica.
Apesar de tais idéias terem sido levantadas por DJs, músicos e agitadores culturais, foi Chico Science um dos principais norteadores da nova música de Recife. Até então, poucos haviam percebido as possíveis relações entre a força dos tambores do maracatu e os riffs distorcidos da guitarra no rock. As proximidades entre as cadências rítmicas do canto na embolada e no rap permaneciam inexploradas. Nenhum outro havia colocado a rítmica ondulante da ciranda na música pop ou o groove da soul music na síncope do maracatu, nem houve compositor que tivesse conseguido desenhar a cidade de Recife com suas cenas de violência e desigualdade e seus personagens, de forma tão simples e pungente.
Chico foi o criador de frases como “A estrovenga girou / passou perto do meu pescoço / corcoviei, corcoviei / não sou besta seu moço / (…) / vou juntar a minha nação / na terra do maracatu / Dona Ginga, Zumbi, Veludinho / segura o baque do Mestre Salu” (O Cidadão do Mundo, CD Afrociberdelia). Neste trecho, ficam claras a utilização de expressões populares (estrovenga é um tipo de foice e corcovear significa curvar o corpo) e a citação de personagens de maracatus conhecidos em Recife.
Science era ouvinte atento dos sons da rica tradição pernambucana e das novidades do mundo da cultura pop, das tecnologias digitais, da Internet e da teoria do caos. Tais conhecimentos aparecem em praticamente todas as suas composições, tanto nas letras como também nas estruturas rítmicas, instrumentais e nas formas de canto. Observador do contexto e dos personagens recifenses, lia com a mesma atenção livros de Josué de Castro (médico e geógrafo que estudara os catadores de caranguejo de Recife) e publicações de histórias em quadrinhos, em especial as de Jacques de Loustal, quadrinhista francês cujo sobrenome foi usado para nomear a banda que deu origem à Nação Zumbi (Loustal).
Um dos motores da proposta do manguebeat era a crítica às proposições do movimento armorial, criado nos anos 1970, em Pernambuco, pelo escritor e dramaturgo Ariano Suassuna. Os armoriais defendiam um retorno às raízes da música do sertão, como uma busca do som primordial brasileiro, longe das misturas e do comercialismo trazido pela tropicália no final da década de 1960. Para tanto, juntaram os sons sertanejos às experiências de músicos eruditos para a criação, por exemplo, da Orquestra Armorial e do Quinteto Armorial. Tal mescla é nítida também nos trabalhos de músicos como Antônio José Madureira.Por mais que essas experiências musicais tivessem gerado ótimas composições, a presença de Suassuna em órgãos oficiais ligados à cultura fazia com que as atenções se direcionassem a esse tipo de música. Os jovens que propunham outras manifestações não encontravam espaço na cidade. Daí as ações críticas contra a posição aparentemente conservadora das políticas culturais inspiradas nos armoriais.Por isso também, o manguebeat é muito mais do que Chico Science. Envolveu ações na imprensa, promoção de festas e apresentações com produção cooperativa e criação de festivais de música pop com a presença de artistas tradicionais (Selma do Coco, Mestre Salu, Lia de Itamaracá, entre outros). Ao mesmo tempo, se muitos jovens músicos ajudaram a criar a cena mangue, Science era o centro de convergência, a pele sensível ao toque da informação, o cérebro criativo das misturas. Mais de uma década após, o manguebeat ainda é visível em Pernambuco. Diversos shows de novos artistas da região em espaços criados pelos poderes públicos locais mantêm a alta temperatura da criatividade musical. Quatro grupos são bons exemplos desta continuidade: Treminhão, um trio instrumental que mistura ritmos regionais com o jazz; Mombojó, que usa recursos da música eletrônica; Cordel do Fogo Encantado, grupo do interior do estado mais ligado às tradições; e Siba e a Fuloresta, ex-integrante da banda Mestre Ambrósio. Há, claro, ainda os artistas da cena inicial, como Mundo Livre S.A., DJ Dolores e a própria Nação Zumbi.
Herom Vargas
Retirado de http://www.revistadehistoria.com.br/
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